Num blog onde se discute a correcção linguística, fala-se, a dado passo, sobre o emprego do verbo haver. É uma questão mais do que debatida nas gramáticas e prontuários. Sabe-se que o verbo é impessoal quando é utilizado com um significado sinónimo de existir. Por exemplo:
Haverá muitos que dirão o contrário.
A verdade é que cada vez mais os falantes se esquecem deste pormenor da gramática normativa e regularizam o uso do verbo, utilizando-o como um verbo pessoal em todas as circunstâncias. Estava agora mesmo a ler um artigo escrito por um professor universitário no Gildot a propósito dos problemas que surgiram no STAPE com o sistema informático, na noite das eleições autárquicas. Não pude deixar de verificar que o referido docente estava a fazer uma defesa acérrima de certo sistema operativo, utilizando como argumentos a sua ciência e a sua autoridade académica. São argumentos válidos, naturalmente. Em conformidade, o referido docente assinou o artigo da seguinte forma:
"Paulo Trezentos
(Docente ISCTE, Investigador ADETTI, co-Fundador da Caixa Mágica)
Uffa.. desculpem lá a catrafada de titulos mas para não restar dúvidas. :-)"
Esta assinatura também tem muito sobre que dizer. Desde logo, a ausência da preposição de nos complementos determinativos (Docente do ISCTE, Investigador da ADETTI. Em português, as preposições têm vindo a ser afastadas do discurso. O curioso, aqui, é verificar essa situação num registo de língua cuidado...
De notar ainda a ausência do diacrítico em "titulos". Os meus alunos costumam ter essa prática abominável, o que reduz, em certos contextos, o carácter distintivo da língua (eg: crítica / critica; fábrica / fabrica, etc.)
A frase "mas para não restar dúvidas" sofreu a obliteração do predicado copulativo e por isso parece que a frase complexa ficou inacabada:
"desculpem lá a catrafada de titulos mas para não restar dúvidas" - com esta redacção falta a oração subordinada adversativa. O que o autor deveria ter escrito (escrevido, dizem os puristas) é: "desculpem lá a catrafada de titulos mas é para não restar dúvidas."
Finalmente, ainda na assinatura, constato um aspecto que me é muito caro pois trata-se de uma interferência da fonética na ortografia: "catrafada". O termo está errado (ortograficamente). O autor da assinatura deveria querer escrever "catrefada", mas não soube, apesar dos títulos que alega não deixarem dúvidas...
O que está em causa é uma harmonia vocálica motivada pela presença exclusiva de duas vogais (fonéticas): o "a" (+rec] (a sílaba tónica da palavra catrefada) e o "a" [-rec] (todas as outras vogais fonéticas). O que se passa, então, é que alguns falantes cuja insegurança linguística não lhes permite pronunciar correctamente (do ponto de vista da ortoépia) certas palavras, escrevem essas palavras como as dizem. Assim, como o autor do artigo dirá, correntemente "catrafada", como não conhece a palavra escrita, vai escrevê-la como fala: "catrafada" pois foneticamente, o "e" [+coronal] da sílaba tónica transforma-se em "a". Um fenómeno semelhante, embora envolvendo vogais diferentes, ocorre em "bêbedo" e "acelerador", mas talvez com menos frequência (espero) resultando nas formas ortográficas "bêbado" e "acelarador".
Voltando ao artigo, em questão, o autor da assinatura afirma a dado passo:
"Sei que haverão alguns que na comunidade SL/A questionem a justiça de ser o ISCTE e a ADETTI a trabalhar neste projecto. Haverão certamente outros grupos com competências SL/A que terão conhecimento e capacidade para o levar avante tão bem ou melhor do que a nossa equipa."
Bastaria a primeira ocorrência do verbo haver para justificar este pequeno artigo no Grafofone. Contudo, o autor, procurando dar algum brilho ao seu texto, recorre à figura de estilo do paralelismo estrutural (recurso até relativamente simples e pobre). A sua infelicidade foi fazer incidir o parelelismo sobre o verbo que usa incorrectamente: "haverão".
Para além destes exemplos, o autor, no referido site dá-nos outros da utilização imprópria do verbo:
"Já fiz num post anterior uma pequena estatistica e haviam no GilDot menos artigos de Caixa Mágica do que de outras distribuições."
"Nos ultimos tempos já houveram vários artigos sobre questões relacionadas com a CM... O que sendo um forum de Linux em Portugal, também não é esquisito de todo, mas pode ser aborrecido."
"O local é o mesmo mas o enquadramento conta com algumas novidades: abertura e convite a novos parceiros (IBM, Sun, IBS, TBA, Bull, Red Hat, DRI,...) para demonstrarem as suas possibilidades, é o dia inteiro e haverão alguns stands com soluções sobre Linux e SL/A."
Em suma: os títulos e os cargos de nada servem e não dissipam dúvidas.
Os restantes editores do Gildot que não se fiquem a rir. Uma pesquisa rápida no Google mostra que muitos têm que ter cuidado com a sua gramática:
haviam site:gildot.org - 59 resultados
"Haviam addons que adicionavam estas funcionalidades..."
"Haviam addons que adicionavam estas funcionalidades. ... Haviam Também terminais Ethernet"
"haviam muitas tarefas que earam mais fáceis de realizar no Linux"
"Não haviam rádios online ou FM/AM?"
etc.
houveram site:gildot.org - 11 resultados
"Oficialmente não houveram versões intermédias."
"É verdade que houveram interesses no técnico durante muito tempo."
"Houveram rumores de negociações com a Google,"
etc.
22.10.05
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6 comentários:
Antes de mais quero agradecer a referência ao meu blog. Também dei uma olhadela aos projectos que me parece estar a desenvolver com os seus alunos que achei muito interessantes. Também sou professora de português, neste momento a dar aulas ao 3.º ciclo. Também considero o uso do computador como um grande contributo para a aprendizagem de línguas estrangeiras. Neste momento falta-me o tempo que me permita dedicar a outros projectos e ainda os conhecimentos informáticos que a longo prazo pretendo adquirir. Para já vou tentando manter o blog Em Bom Português vivo, tentando dar resposta às questões que me são apresentadas.
Olá Paula! Não tem nada de que agradecer. Afinal de contas um bom "blog" merece sempre uma referência! Obrigado pelo elogio relativamente aos projectos de conteúdos que tento desenvolver com os meus alunos. Digo tento, pois raramente são receptivos (infelizmente) a estas aproximações entre os conteúdos programáticos e as TIC. Espero que o seu "blog" se mantenha saudável e conto no futuro vir a colocar outras ligações para ele.
Antes de mais congratulo-o pela iniciativa de criar um blog que ajude às carências linguísticas e de escrita que grassam por essa sociedade fora. Se antes eram os intelectuais quem detinham o falar bem e o bem escrever, hoje em dia o mesmo não se verifica. Sou estudante de Línguas e Literaturas e trabalho na área do Jornalismo, e tenho um especial interesse na área de revisão/"copydesk". Infelizmente, actualmente é cada vez menor o número de jornais que procuram assegurar a revisão, que procuram não descurar a nossa língua num veículo de comunicação tão importante como é um Semanário. Há exemplos muito graves de erros gramaticais, construção de frases ou até mesmo de produção linguística. O caso que expôs é cada vez mais frequente, mas pelo que vejo na minha profissão, há bem piores... Continuação de bom trabalho!
Olá Ricardo Cruz!
Gostei dos seus comentários e ainda bem que há alguém que se preocupa com a língua portuguesa. Uma pequena dúvida. Será que está correcto dizer:"... e para não restar dùvidas...". Dúvidas está no plural e se não estou errado restar também teria de estar. Logo deveria ser "... e para não restarem dúvidas...". Estou certo ou errado. Obrigado
E já agora...
redundãncia -> redundância
distintividade???
O uso de acentos (que não são bem a mesma coisa que diacríticos) não concede redundância à escrita. Antes pelo contrário. Aliás, como mostrou, a falta destes, torna-a ambígua.
P.S: Há que ser rigoroso...
De facto a redacção não foi feliz nesse ponto. Obrigado pela apreciação crítica. Julgo que ficou mais claro e mais preciso, agora.
Com certeza que os acentos não são bem a mesma coisa que os diacríticos. Na verdade, são entidades diferentes. Se utilizei o termo diacrítico é porque me parece que é a ausência do diacrítico que provoca a mudança do acento e não a mudança do acento que provoca a ausência do diacrítico. Pelo menos é o que observo empiricamente nas aulas. Obviamente que esta hipótese carece de confirmação através de um estudo controlado, para que sejamos rigorosos.
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